“Pois a tragédia, incansavelmente, mostra que nenhuma cidade poderia proteger o mortal contra a morte que nele habita”
-Nicole Loraux
Há duas pestes no Brasil. Não, não falo do desgoverno Bolsonaro muito embora as comparações entre o caos engendrado por esse senhor e seus acólitos com o vírus já tenham rendido boas análises. Há duas pestes no Brasil, “a peste” e “A Peste”. A primeira, Sar-Cov-2, é um vírus invisível, mas material, isto é, uma peste real, letal, sem firula. Mas há também uma Peste com “P” maiúsculo, sua “ideia”, o entendimento do vírus e os discursos construídos a seu redor, que facilmente caem na banalidade. Explico-me: uma é a peste é vivida, é próxima, mata centenas todos os dias, mata nossos familiares, pode nos matar e tem efeitos cotidianos como não poder sair de casa, a diminuição ou aniquilação de nossa renda, o isolamento social, e por isso mesmo, nunca é banal; a outra, A Peste, é sempre em alguma medida uma “abstração”... Passa longe, mata alguém em algum lugar, lota algum hospital distanciado e mesmo com ela preocupados só sabemos de seus efeitos lendo no jornal um gráfico bem organizado ou um número sem rosto de mortes totais. A culpa, evidentemente, não é do jornal que simplesmente faz seu melhor para informar, antes, o problema é o aprofundamento da diferença, da distância, ou verdadeira dissociação entre as duas pestes.
De início, é verdade, a distância é inevitável e mesmo desejável. Se cada pessoa tivesse que ir até o Hospital das Clínicas para vivenciar com os próprios olhos a gravidade do perigo da doença apenas aumentaríamos o risco de contágio, do mesmo modo, não precisamos todos ir à guerra e sobreviver às trincheiras para saber dos malefícios bélicos, e para nos posicionar contra sua brutalidade. Abstrair nos permite comunicar e analisar um problema sem que nos confrontemos diretamente com ele num plano individual. Nesse sentido a possibilidade de pensar a “Peste” nos salva do real terrível, do sofrimento inominável da outra, da “peste”, pois nos permite propor políticas de controle, desenvolver técnicas de cuidado, produzir discursos e análises, etc... Sem tomar distância estamos no olho do furacão, assim, a abstração nos protege e permite que tomemos uma posição. Porém – e aqui está a questão - distância de mais e o problema corre o risco de parecer pequeno, natural ou até banal. Só à Peste alguns ousam confrontar a Economia, discutindo os méritos da quarentena. Só a Peste é distante o bastante para que a vida siga “normal” como pretendem alguns a despeito da devastação que a peste deixa em seu caminho.
Nas lições do decorrer de mais uma peste, a do seu romance La Peste, Camus explora essa distância com maestria ao abordar a banalidade da morte na cidade de Oman, a qual “vive para os negócios”, e segue como se a morte não existisse mesmo quando a destruição promovida pela peste bubônica já fecha comércios e mata centenas por dia. A Peste, “abstração” que interrompe a vida ordinária de Oman é vista como nada mais que um empecilho, como mais uma guerra, mas realmente como “a Guerra” – abstrata, banal e eterna que a cada tanto mata alguém no Oriente Médio e tem o gravíssimo e lamentável inconveniente de aumentar os preços da gasolina no nosso país. Sim, no mínimo a abstração nos preserva, mas no seu máximo nos desumaniza, banaliza a vida do outro e nossa própria. Afinal, quem aguenta se aproximar sem barreiras da peste, da morte, do desastre? Quem aceita o terrível como também parte de sua própria vida? Todos sabemos da Pobreza no Brasil e da Desigualdade no mundo, mas nem por isso deixamos de seguir nosso cotidiano sem chorar pela fome: mesmo o mais dedicado ativista toma alguma distância para não ser esmagado pelo peso dessas realidades sociais e para poder melhor enfrentá-las. Rieux, o médico-herói personagem do romance de Camus explicita perfeitamente essa distância ao admitir que sua luta científica contra a praga é em algum sentido uma “abstração” técnica que faz o sofrimento e a morte ganharem uma “irrealidade” no trabalho do dia-a-dia. Entretanto ressalta que “quando a abstração começa a matar-nos, é necessário que nos ocupemos da abstração”.
Nesse sentido a “doença” que carregamos, a peste de Camus, é evidentemente metafórica no sentido que a volta da peste negra encarna todo tipo de mal humano que nos vemos forçados a reconhecer, mas dos quais nos abstraímos, sofrimentos de tipo estrutural, por assim dizer, que nas tematizações do livro incluem desde as doenças aos horrores da guerra passando pela violência do sistema judicial e da desigualdade social. Não por acaso Camus escreve em 1947 após verificar a apatia que contaminara grande parte de seus concidadãos submetidos ao regime nazista durante a Segunda Guerra. O irracionalismo fascista, a destruição da cultura e de vidas humanas que não se conformavam ao ideal ariano não eram ignoradas por nenhum dos povos dominados por Hitler. Como a Peste em Oman as realidades brutais que perturbariam o sono dos franceses que não se juntaram à resistência eram mantidas à distância como um mero inconveniente: os nazistas (a Peste) estavam aqui, dominavam Paris, todos sabiam, mas ainda assim seguiam como se a invasão fosse uma parte do cotidiano que não lhes dizia respeito totalmente. A Guerra, A Peste, a Morte são abstraídas do seu terrível quando se tornam tão “parte da vida” que são invisíveis, um problema real, mas não meu. Algo para alguém resolver, afinal, eu ainda não morri – afinal, os nazistas não me fizeram mal – afinal, eu não tenho a peste.
Quando o santo Tarrou, amigo de Rieux nos conta sua trágica história de combate armado contra todo tipo de injustiça social e explica porque, muito embora não seja médico, decidiu combater a praga de Oman, a reflexão sobre a responsabilidade parece ser a resposta que supera a distância da banalidade. Pergunta-se como ratos e pessoas morrem aos milhares, inundando as ruas de Oman, mas todos seguem como se fossem invisíveis, apenas mais uma parte da paisagem escondida à céu aberto pelo véu da banalidade cotidiana tal como os moradores de rua ou a desigualdade social e racial, que são evidentes na cidade. A conclusão de Tarrou é que não podemos viver como se a Peste fosse banal ou alheia: se é uma abstração, certamente é uma abstração que pertence a todos, que está em todos, causada por todos. Nesse sentido metafórico “todos temos a peste”, diz ele, de modo que basta um passo em falso para que nossos atos contaminem nosso semelhante com sofrimento, com a ameaça de morte ou a muito literal doença no caso da peste bubônica e do novo coronavírus atualmente – sem cuidado a Peste, a Morte e o Sofrimento são infecciosos.
Se trata, realmente, de pensar nos efeitos “contagiosos” de nossas ações. Sobre como perpetuamos um problema quando não o reconhecemos como nosso, em nós, na medida que também participamos de sua propagação, na verdade, mais precisamente, na medida que potencialmente participamos na sua produção e reprodução. A mensagem aqui não é um simples alerta sobre a importância fundamental da empatia para a solidariedade e a vida comunitária na qual nos unimos contra o mesmo inimigo comum (seja o Capitalismo, ou a Peste). Também temos a peste e assim a propagamos, a recriamos ao não lutar por seu fim. A realização empática se soma a um entendimento interno de nossas próprias limitações: que também carregamos em nós a Praga, o potencial de fazer o mal, aos outros e a nós mesmos – somos também neste sentido empesteados, capitalistas, machistas e racistas se não nos responsabilizamos pela produção e reprodução destas estruturas:
“Compreendi assim que eu, pelos menos, não tinha deixado de ser um empestado durante todos esses longos anos em que, no entanto, com toda a minha alma, eu julgava lutar contra a peste. Descobri que tinha contribuído indiretamente para a morte de milhares de homens, que tinha até provocado essa morte, achando bons os princípios e as ações que a tinham fatalmente acarretado.”
Diz a ética santa de Tarrou. Certamente a peste que é a nossa não tem nada de banal e pouco de abstrato visto que a condição de Praga é um universal que não nos é externo: a distância exata entre vivência real terrível e a abstração fria banalizante é a distância do ato de (re)conhecimento que nos reflete no sofrimento do outro e nos torna potencialmente responsáveis por ele. Reconhecimento que pode ser promovido sem o contato direto, isto é, pela cultura, pela arte ou pela análise que são oportunidades de se aproximar do desastre na medida exata em que o Outro não nos é plenamente estranho, em que somos tocados por ele e o carregamos dentro: somos esse outro, somos esse desastre em potencial e sua existência de nós também depende. Viver na pele a catástrofe da peste não é, portanto, necessário para compreende-la como nossa – podemos vive-la em nós com a mediação cultural que reconhece seu Real sem promover a desresponsabilização da banalidade, da invisibilidade não disruptiva promovida pela abstração. A Peste é contagiosa, já somos empesteados e por isso responsáveis por não propagar seu horror.
Escrito por Daniel Modos
(Obra: Edvard Munch “A Menina Doente - Det syke barn” - 1886)
Comments