Todas as culturas possuem uma forma de ritualizar a morte. Evidências arqueológicas indicam que existem rituais fúnebres desde a Pré-História, mostrando que a preocupação com a finitude e o cuidado com os entes queridos mortos vem permeando o desenvolvimento da humanidade. De certo modo, a forma de ritualização de uma sociedade revela como ela se organiza e se reorganiza diante de mudanças e como ela simboliza esses momentos. Desta forma, refletir sobre os rituais fúnebres neste momento é também refletir sobre o sofrimento psíquico e nas implicações na saúde mental.
Os rituais fúnebres possuem diversos significados, que incluem a demarcação de um estado de enlutamento, reconhecimento da importância da perda e da importância daquele ente que foi perdido. Portanto, serve para marcar tanto a perda do entre querido quanto a vida vivida por aquela pessoa. É comum ser um momento de homenagens e de se manifestar discursos e lembranças. Algo muito importante nesses rituais é que eles criam um espaço de suporte familiar. É um espaço para chorar, para manifestar sua dor e de poder expressar toda a fragilidade dentro do seu grupo de confiança. Traz uma sensação de "não estou sofrendo sozinho" e "posso compartilhar a minha dor", facilitando, desta forma, a expressão do sofrimento. Assim, os funerais podem servir para contextualizar a experiência, marcar essa transição de vida e dar sentido a essa perda.
Outro fator interessante é a importância do caráter previsível dos rituais. Essa previsibilidade ajuda na organização (interna e externa) do indivíduo. A pessoa enlutada tende a apresentar certa desorganização e confusão, e não é incomum a percepção de perda de tempo e espaço. Deste modo, os passos ritualizados e previsíveis ajudam a pessoa a se enquadrar e se organizar. Então, quando se pensa "hoje é missa de sétimo dia", por exemplo, então já há um registro cognitivo de "já se passaram setes dias da morte" e, aos poucos, a pessoa vai entendendo e se organizando nesta nova rotina e vai lidando com o luto no decorrer do tempo.
Mas como fica esse ritual tão importante para a organização psíquica num momento como esse de pandemia e isolamento social? De uma hora para outra, aquele ente querido é internado e fica em isolamento. Já não é possível estar presente nos últimos momentos e a morte apareceu de forma rápida. Para piorar a situação, todo esse momento ritualizado se perde. Afinal, uma série de protocolos de segurança precisa ser cumprida, tais como: caixão lacrado, velório de 10 minutos e com até 10 pessoas da família, que as pessoas se mantenham distantes umas das outras, a impossibilidade de pessoas do grupo de risco não participarem, etc. E pronto, acabou. Os enlutados não têm mais o seu espaço simbólico para expressar o sofrimento e nem o contato com a sua rede de apoio. Falta até mesmo aquele abraço.
Existem algumas sugestões para passar por esse processo. Eventos virtuais têm sido muito utilizados nesses tempos de isolamento e, podem ser usados num momento como esse também. É uma forma de estar presente para aqueles que estão sofrendo, de conversar, lembrar-se da pessoa, compartilhar experiências e memórias. Isso pode virar uma página na internet, um vídeo ou até mesmo, num futuro, um livro de memórias. Para aqueles que são religiosos, fazer uma oração, acender uma vela e enviar a foto por WhatsApp, pode ser uma forma de trazer conforto. Enfim, assim como esse é um momento para pensar em novas formas de comunicação, as redes de apoio de familiares enlutados precisam ser fazer presentes e também precisam pensar em novas formas e rituais simbólicos para devolver aquele espaço de choro e de apoio.
Neste momento, ouvir a necessidade do outro e respeitar a dor e o tempo de cada um, é de extrema importância. É importante acolher os sentimentos e dar atenção para quem está fragilizado. Não deixe de expressar o que você sente com as pessoas próximas. Se for pesado demais, procure ajuda.
Escrito por Milena Lobão
Fontes:
SOUZA, Christiane Pantoja de; SOUZA, Airle Miranda de. Rituais Fúnebres no Processo do Luto: Significados e Funções. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 35, 2019.
Novos rituais do luto em tempos de distanciamento físico. Vamos falar sobre o luto?, 2020. Disponível em: < http:// vamosfalarsobreoluto.com.br/app/uploads/2020/04/NovosRituais_vfsol_15Abr.pdf-1.pdf >. Acesso em: 11 de maio de 2020.
Kommentare