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Fibromialgia e Psicossomática

A fibromialgia é uma manifestação psicossomática que se caracteriza pela ocorrência de dor musculoesquelética generalizada, com ausência de processos inflamatórios articulares ou musculares. Os sintomas característicos mais comuns são dores musculares generalizadas, dismenorreia e rigidez. Entre outros sintomas estão a síndrome do cólon irritável, a síndrome da bexiga irritável, a síndrome de pernas e braços inquietos e anormalidades no sono. Manifestam-se com períodos intermitentes de melhora e piora, que se tornam mais intensos durante alguns meses e depois se estabilizam.

Desde meados do século XIX já eram reconhecidas manifestações clínicas que sugeriam o diagnóstico de fibromialgia. Durante as décadas de 1950 e 1960 o termo fibrosite foi utilizado de forma pouco específica, havendo diversos relatos de dores musculares referidas, uniformes quanto ao padrão das queixas, porém diferindo quanto aos locais acometidos.

Alguns autores colocam que a origem da fibromialgia está relacionada à interação de fatores genéticos, neuroendócrinos, psicológicos e distúrbios do sono (Moldofsky, 1989). As alterações nos mecanismos de percepção de dor atuam como fator que predispõe o indivíduo à fibromialgia, frente a processos dolorosos, a esforços repetitivos, à artrite crônica, a situações estressantes como cirurgias ou traumas, processos infecciosos, condições psicológicas e até retirada de medicações, como corticosteróides (Yunus, 1994).

A principal queixa dos pacientes com fibromialgia é a dor difusa e crônica, muitas vezes difícil de ser localizada ou caracterizada com precisão (Goldenberg, 1987). Os distúrbios do sono e a fadiga são relatados por 75% dos casos (Wolfe, 1990), fadiga esta que tem início logo ao despertar e duração maior do que uma hora, reaparecendo no meio da tarde. Os pacientes referem, ainda, rigidez matinal e sensação de sono não restaurador, apesar de terem dormido de 8 a 10 horas. O sono é superficial, tendo os pacientes facilidade de acordar frente a qualquer estímulo, além de apresentar um despertar precoce (Moldofsky, 1989).

Os exames laboratoriais e o estudo radiológico são normais e, mesmo quando alterados, não excluem o diagnóstico de fibromialgia, uma vez que esta pode ocorrer em associação a artropatias inflamatórias, a síndromes cervicais ou lombares, as colagenoses sistêmicas, a síndrome de Lyme e a tireoidopatias (ibid.). De uma forma geral o tratamento da fibromialgia repousa sobre quatro pilares: exercícios para alongamento e fortalecimento muscular, assim como para condicionamento cardiorespiratório; técnicas de relaxamento para prevenir espasmos musculares; hábitos saudáveis para melhorar a qualidade de vida e reduzir o estresse. Os pacientes com fibromialgia devem ter conhecimento pleno de sua condição clínica, uma vez que ela se caracteriza por recidivas intermitentes dos sintomas de dor e fadiga; medicações para o controle da dor e dos distúrbios do sono. O tratamento medicamentoso inclui a prescrição de antiinflamatórios e aspirina, antidepressivos tricíclicos; inibidores da recaptação da serotonina; benzodiazepínicos; medicações para o sono; medicações tópicas; analgésicos; e derivados de anticonvulsivantes.

Os sintomas físicos descritos por diversos pacientes são geralmente os mesmos, diferenciando-se apenas de membro ou intensidade; cada paciente, porém, tem sua história, sua dor particular. A partir daí, dando lugar às queixas físicas, surgiram muitas histórias de vidas sofridas, e a dor do corpo se transformava em palavras, enfim, histórias que pareciam se repetir uma atrás da outra. Traços recorrentes: pessoas que cuidam de tudo e todos; que se sentem responsáveis pela felicidade do outro; que sofreram perdas financeiras ou de saúde; situações de pai, marido violento; gravidez precoce; alcoolismo; abusos físicos, verbais.

“Quando as emoções dolorosas invadem o psiquismo em momentos especiais, como é o caso de luto e/ou trauma, é gerada uma quantidade excedente de excitações que transborda e costuma produzir, curto-circuitos ao soma, ao ato ou à alucinação, produto dos investimentos das marcas sensoriais primitivas, não transformadas em estrutura psíquica”. (de Aisemberg, Praga 2013)

Podemos notar semelhanças entre pacientes com fibromialgia e as pacientes descritas por Freud apresentando quadros de Histeria, tanto nos relatos de suas vivências abusivas ou sofridas, quanto na forma desta histeria se manifestar no corpo.

Na Histeria, os sintomas descritos por Freud em seus estudos foram: abulia, afasia, alucinação, amaurose, ambliopia, amnésia, analgesia, anestesia, angústia, anorexia, artralgia, asma, astasia, atetose, attitudes passionelles; cãibras no pescoço, Cephalagia adolescentium, choro, contração de dedos das mãos e dos pés, contraturas, convulsões epileptóides, Délire ecmnésique, delírios, depressão, desmaios, diplopia, dispnéia, distúrbio do andar, distúrbios auditivos, distúrbio da fala, distúrbio do olfato, distúrbio da visão, dor de cabeça, dores gástricas, ecmnésia, enxaqueca, eritema, espasmos, espasmos clônicos, espasmos histéricos, estrabismo, estupor, euforia, fadiga, sensação de frio, gagueira, constricção da garganta, hemianestesia, hiperalgesia, hiperestesia, idées fixes; insônia, macropsia, mutismo, nevralgia, nevralgia ovariana, palpitações, parafasia, paralisia, paramnésia, paresia, parestesia, petit-mal; pseudo-encefalite, pseudoperitonite, surdez, tiques, tontura, tremores, Tussis nervosa, vômito, zoopsia (1895, p. 341). Pode-se destacar, portanto, os sintomas comuns apresentados no quadro clínico “Fibromialgia” e no quadro clínico “Histeria”: angústia, choro, depressão, distúrbio do andar, dor de cabeça, espasmos, fadiga, insônia, nevralgia, parestesia e tremores.

Freud (1895) pressupunha que os pacientes histéricos possuíam uma excitabilidade anormal do aparelho relacionado com as sensações de dor. Quimby (1988), também descreve a maior sensibilidade dos pacientes fibromiálgicos frente a um estímulo doloroso. Freud descobriu o papel fundamental que a sexualidade apresenta na etiologia da histeria, bem como as questões relacionadas à feminilidade. Tal fato parece ter relevância na fibromialgia, uma vez que por volta de 90% dos seus casos diagnosticados são de pacientes do sexo feminino. Os distúrbios do sono relatados em 75% dos casos de fibromialgia (Wolfe, 1990), já eram sintomas abordados por Freud em seu texto “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos” (1893).

Outro ponto em comum das duas patologias é o descrédito que ambas inicialmente provocaram e ainda provocam frente aos médicos. Afinal, o diagnóstico das duas doenças se dá exclusivamente pelas sensações relatadas pelos pacientes, não existindo nenhum exame que possa comprovar a veracidade do que é descrito.

Os sintomas histéricos continuam sendo tratados com a mesma falta de simpatia por alguns médicos como eram no final do século XIX. Esse mesmo preconceito encontra-se descrito na literatura sobre fibromialgia. Hudson (1989) relata que pessoas que apresentavam dor generalizada e uma série de queixas mal-definidas não eram levadas a sério e que seus sintomas eram tomados por alguns como imaginários ou desprezíveis, e cita que ainda hoje tais sintomas dividem opiniões. Como afirma Melman (2003), “... sempre foi uma particularidade histérica colocar dores na cena clínica, que não têm fundamento orgânico. É uma tradição absolutamente milenar” (p. 115).

Então, tomando como base de que a fibromialgia pode ser considerada um caso clínico de histeria (SLOMPO et al., 2006), é importante procurar entender o que esse sintoma físico quer comunicar. Um estudo realizado no Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com 114 mulheres com diagnóstico de fibromialgia procurou identificar se essas pacientes possuíam algum histórico de trauma nas suas vidas. Foi identificado que 96,5% dessas mulheres tinham sofrido pelo menos um tipo de trauma, sendo que o abuso e a negligência eram os mais relatados. Dessas mulheres, foi levantado os seguintes traumas: 75,4% negligência emocional; 75,4% negligência física; 69,3% abuso emocional; 54,4% abuso físico; 35, 1% abuso sexual. Ainda, eles verificaram uma forte correlação entre a ocorrência de negligência emocional e baixa funcionalidade da paciente (FILLIPON, 2008).

Ainda pensando nesse histórico de trauma, uma dissertação realizada na Universidade de Lisboa, buscou verificar a presença de trauma na história das pacientes e que outras características essas pacientes podem apresentar. Aqui também é marcante a presença do trauma infantil no histórico (85,7% dos casos). Eles puderam verificar que essas pacientes sentiam que eram muito distantes afetivamente de suas mães e que na vida adulta se sentiam um pouco mais próximas. Outra observação interessante foi a de que essas pacientes possuíam um funcionamento onírico muito empobrecido, tendo um pensamento marcantemente operatório e ausência de capacidades simbólicas (GANHÃO, 2009).

De fato, alguns autores relatam que pacientes com fibromialgia relatam no consultório histórico de negligência e abandono materno. Ainda, existem casos em que a paciente teve que assumir responsabilidades sobre uma mãe que precisava ser cuidada e, ela mesma, sente que não recebeu o devido cuidado na infância (filhas terapeutas) Muitas vezes, na fase adulta, essas pacientes voltam a se aproximar dessas mães e assumem um cuidado extenuante e intenso. Muitas vezes, elas sentem que não foram desejadas tanto pela mãe como pelo resto da família e se enxergam como fardos para os seus familiares. Por conta disso, tendem a buscar ser a “filha ideal” e aceitam qualquer coisa de modo muito resignado, sendo comum associar essa postura exaustiva a uma tentativa de minimizar o fardo que elas pensam trazer para a família (BÉJAR, 2017). Muitas dessas pacientes se descrevem como crianças comportadas, estudiosas, aplicadas, isentas de frivolidades, maduras e responsáveis (verdadeiros arrimos de família, “como os homens”), sendo que elas não se permitiam relaxar ou se deixar se despreocupar com relação à mãe ou à família. Muitas pacientes relatam que a fatiga é sua companheira já que há uma busca inatingível de um modelo ideal (BÉJAR, 2017).

Outro ponto bastante interessante é a questão de que muitas dessas mulheres passam a cuidar de forma demasiada da mãe durante a sua vida ou na fase adulta. Esse cuidado acaba, muitas vezes, por comprometer seus relacionamentos e realizações. Se partirmos da ideia de que muitas dessas pacientes passaram pela experiência de negligência emocional e física, é possível supor que faltou no seu desenvolvimento infantil uma preocupação materna primária proporcionando, desta forma, uma espécie de vazio traumático. Nesse vazio é possível supor que tenha ocorrido a ausência de traços representacionais do laço materno. É como se não tivesse tido a representação de ter tido mãe então essa paciente cuida dessa mãe como forma te ter certeza de que tem mãe (de que existe um laço).

“A obrigação de carregar o corpo da mãe preenche a lacuna deixada pela ausência dos traços representacionais ‘daquilo que nos dá a certeza de que tivemos mãe e que fomos bem acalentados nos seus braços’, como dizia uma paciente.” (PAPAGEORGIOU, 2017, p. 73)

Ainda com relação a esse vazio traumático criado, é importante resgatar outras possíveis consequências e que são comumente encontradas nas pacientes com fibromialgia. Essa ausência de preocupação materna primária e a falta de investimento pelos pais pode atingir a realidade interna do bebê prejudicando, desta forma, a capacidade de simbolização do indivíduo (ABRAM, 2000). Essa perda de capacidade simbólica faz com que o sujeito fique mais vulnerável a situações de perda no futuro (GANHÃO, 2009). Assim, é possível compreender o porquê de várias pacientes relatarem que o início dos seus sintomas foi logo após um momento de perda ou ruptura (perda de emprego, luto familiar, divórcio, entre outros). Uma falha na capacidade de simbolização também pode levar a uma falha na capacidade de identificar e de descrever os seus próprios sentimentos e emoções (alexitimia) favorecendo, desta forma, o aparecimento do sintoma psicossomático.

Essa falha no processo de simbolização também pode estar associada a outra característica muito marcante relatada pelas pacientes com fibromialgia, que é a incapacidade de sonhar, a ocorrência de um sono pouco reparador, de um sonho falhado e da falha do imaginário. Então, a sensação de desprezo (rejeição) atinge essa realidade interna, inibe a simbolização e leva a um empobrecimento do mundo onírico. Segundo Coimbra de Matos (2002 apud GANHÂO, 2009) “O sujeito, não sonhado pelos pais, não tem capacidade de sonhar: é o sonho falhado.

Assim, diante do exposto, fica um pouco mais claro o que o sintoma quer comunicar e também, por que a psicoterapia é tão efetiva na melhora dessas pacientes. Muito se fala que os tratamentos medicamentosos e comportamentais somente trazem alívio para uma parte dos sintomas (principalmente a dor), porém, os relatos de fadiga extrema e dificuldade com o sono não melhoram (BÉJAR, 2017). A psicoterapia ajuda a paciente a aumentar a capacidade de simbolização e a reconhecer e comunicar, por meio da fala e não do corpo, os seus sentimentos e emoções.


Milena Lobão Pinheiro


Portinari, 1947. Mulher chorando. Óleo sobre tela: color. Coleção particular. (https://artsandculture.google.com/asset/mulher-chorando/wgGMDt2ERUzg3g?hl=pt-BR)


Referências

ABRAM, J. A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.

AISEMBERG, E. R.. ‘Dor física versus dor psíquica’. (IPA- International Psychoanalytical Association), Praga, 2013 – at “Dor psíquica, dor corporal” ed.Blucher, pág.33.

BÉJAR, Victoria Regina. Dor psíquica, dor corporal: uma abordagem multidisciplinar. São Paulo: Blucher, 2017.

FILIPPON, A. P. M. A influência do trauma infantil na fibromialgia em mulheres. 2008.

FREUD, S. (1888). Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1.

GANHÃO, B. M. B. Contributo à compreensão de uma patologia incompreendida: a fibromialgia na perspectiva psicanalítica da psicossomática. 2009. Tese de Doutorado.

HUDSON, J. I.; POPE, Jr. H. G. Fibromyalgia and pshychopathology: is fibromyalgia a form of “affective spectrum disorder?”. J. Rheumatol., 1989. Disponível em: <http://www.fibromialgia.com.br> Acesso em: 29 de maio 2020.

MARQUES, SLOMPO e BERNARDINO. Revista Latinoamericana Psicopatoligia Fundamental, IX, 2, 263-278 Estudo comparativo entre o quadro clínico contemporâneo Fibromialgia e o quadro clínico histeria descrito por Freud no século XIX’.

MELMAN, Charles. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003.

MOLDOFSKY, H. Musculoskeletal symptoms and non REM sleep disturbance in patients with fibrositis syndrome and healthy subjects. Psychosom. Med., 1975. Disponível em: http://www.fibromialgia.com.br> Acesso em: 29 de maio 2020.

PAPAGEORGIU, M. A insustentável leveza do corpo da mãe. In: BÉJAR, Victoria Regina. Dor psíquica, dor corporal: uma abordagem multidisciplinar. Editora Blucher, p. 59-83. 2017.

SLOMPO, Thais Krukoski Marques et al. Estudo comparativo entre o quadro clínico contemporâneo “fibromialgia” e o quadro clínico “histeria” descrito por Freud no século XIX. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 9, n. 2, p. 263-278, 2006.

YUNUS, M. B. Psychological aspects of fibromyalgia syndrome: a component of the dysfunctional spectrum syndrome. Baillière’s Clinical Rheumatology, 1994. Disponível em: <http://www.fibromialgia.com.br>. Acesso em: 29 de maio 2020

WOLFE, F. The clinical syndrome of fibrositis. Am. J. Med., 1986. Disponível em: <http:/ www.fibromialgia.com.br>. Acesso em: 29 de maio 2020


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