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Foto do escritorMilena Lobão

DEFESA PELO FALSO SI-MESMO E AS PERSONALIDADES FRONTEIRIÇAS (BORDERLINE)

Introdução


O Transtorno da Personalidade Borderline pode ser caracterizado por um padrão difuso de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, autoimagem e afetos e acentuada impulsividade, que pode começar no início da idade adulta (Hegenberg, 2021). Na obra de Winnicott, o borderline foi tratado em diversos textos e pode ser definido, de forma abrangente, da seguinte forma:


Pela expressão "caso borderline" quero significar o tipo de caso em que o cerne do distúrbio do paciente é psicótico, mas ele possui sempre suficiente organização psiconeurótica para ser capaz de apresentar uma psiconeurose ou um transtorno psicossomático quando a ansiedade psicótica central ameaça irromper de forma grosseira. (Winnicott, 1968/1994, p. 172).

Ao se pensar o paciente borderline a luz da teoria Winnicottiana, é importante considerar os conceitos de verdadeiro e falso self e a importância da integração do self no desenvolvimento emocional do indivíduo. Segundo Naffah-Neto (2007), o paciente borderline é um indivíduo que vive na fronteira entre a neurose e a psicose, sendo que em períodos mais saudáveis o falso self cumpre o seu papel defensivo e esse indivíduo pode apresentar uma dinâmica semelhante ao do indivíduo neurótico. Porém, em períodos de maior tensão, e o falso self falha no seu papel adaptativo, esse indivíduo pode se sentir invadido e pode apresentar sintomas psicóticos variados (Naffah-Neto, 2007).

Em alguns casos, o indivíduo borderline não se sente completo ou existindo e não se conectam com si próprios (Hegenberg, 2021) já que, devido a uma falha ambiental, há uma dissociação do verdadeiro e do falso self, fazendo com que não seja possível a formação de um eu unitário (Winnicott, 1965/2022). Nessas pessoas há uma imaturidade e uma vivência vazia e isso pode ser explicado, segundo Winnicott (1960/2022, p. 188), pelo fato de que “Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real. Enquanto o self verdadeiro é sentido como real, a existência do falso self resulta em uma sensação de irrealidade e em um sentimento de futilidade.”.

Desta forma, o presente trabalho pretende trazer algumas considerações sobre o verdadeiro e o falso self e sobre como o entendimento desses aspectos do desenvolvimento emocional podem ajudar a compreender o que se observa nos pacientes com personalidade borderline.

 

O verdadeiro e o falso self


O indivíduo nasce em um estado de extrema dependência, em um determinado ambiente e possui um corpo com impulsos instintuais. Com o cuidado bem adaptado às suas necessidades que esse bebê recebe na chamada primeira mamada teórica é que o bebê vai ser capaz de ter uma experiência de existência pessoal (Winnicott, 1960/2022). Nessa fase, o bebê tem um gesto, um movimento em direção a algo. Se o ambiente fornece no momento do gesto esse algo, o bebê o encontra. Assim ele tem a ilusão que ele criou o que ele encontrou. Desta forma, temos o que se chama ilusão de onipotência que é fruto do encontro de um gesto espontâneo do bebê com a adaptação total do ambiente que complementa o gesto do bebê. (Winnicott, 1988/1990). Esse processo faz parte do gesto espontâneo e criativo do bebê e é o florescimento da experiência de existir (Winnicott, 1960/2022). Assim, “o self verdadeiro provém da vitalidade dos tecidos corporais e da atuação das funções do corpo” (Winnicott, 1960/2022, p. 189). Ainda, com relação ao verdadeiro self, Winnicott explica que “No estágio inicial o self verdadeiro é a posição teórica de onde vem o gesto espontâneo e a ideia pessoal. O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real” (Winnicott, 1960/2022, p. 188).

A ideia de formulação de um verdadeiro self é importante para entender o falso self já que o falso self “não faz mais do que reunir os pormenores da experiência de viver” (Winnicott, 1960/2022, p. 189). Conforme o crescimento e desenvolvimento do bebê, o falso self começa a se desenvolver gradualmente para que o bebê possa lidar com o ambiente e facilitar as relações sociais. O falso self teria uma função intermediária entre o indivíduo e o ambiente, ou seja, facilita a adaptação do indivíduo ao ambiente “o equivalente ao falso self no desenvolvimento normal é aquele que se pode desenvolver na criança no sentido das boas maneiras sociais, algo que é adaptável” (Winnicott, 1960/2022, p. 190).

Porém, falhas na adaptação podem ocorrer e pode ser que o ambiente seja incapaz de suprir, de maneira sensível, as necessidades do bebê. Nesse momento, é possível dizer que há uma falha no estabelecimento do contato do bebê com a realidade externa, uma cisão. Apesar dessa falha, o bebê sobrevive, mas,

a falha neste ponto exacerba ao invés de curar a cisão na pessoa do bebê. Em vez do relacionamento com a realidade exterior atenuado pela utilização temporária da onipotência ilusória, desenvolvem-se dois tipos diferentes de relação objetal, que podem existir desconectados um do outro a ponto de constituir uma grave doença, que eventualmente se fará notar na forma clínica conhecida como esquizofrenia. De um lado estará a vida privada do bebê, na qual os relacionamentos têm por base a sua capacidade de criar, mais do que a memória dos contatos anteriores, e de outro lado estará um falso self, que se desenvolve sobre uma base de submissão e se relaciona com as exigências da realidade externa de forma passiva. (Winnicott, 1988/1990, p. 128).

Então, a mãe que não consegue implementar a onipotência do bebê, e falha repetidamente em atender o gesto espontâneo do bebê, leva à substituição do gesto do bebê pelo seu próprio gesto, que acaba por ser validado pela submissão do bebê. Essa submissão por parte do bebê é o início do falso self. Assim, o self verdadeiro não se torna uma realidade viva e o falso self é tratado como real, levando, então, a um sentimento de vazio, futilidade e desespero (Winnicott, 1959/2022; Winnicott, 1960/2022). De acordo com Winnicott (1952/2021)

Nos casos extremos de cisão, a vida interior secreta terá muito pouco do que pertence à realidade externa. Ela é verdadeiramente incomunicável. Quando existe em alto grau a tendência à cisão nessa fase inicial, o indivíduo corre o risco de ser seduzido para uma vida falsa, e os instintos tornam-se nesse caso aliados do ambiente sedutor. (...) Uma sedução bem-sucedida desse tipo pode produzir um eu falso que parece satisfazer o observador incauto (...) O falso eu, desenvolvido com base na submissão, não pode candidatar-se à independência da maturidade, salvo, quem sabe, a uma pseudomaturidade num ambiente psicótico. (Winnicott, 1952/2021, p. 402).

O falso si-mesmo patológico e as personalidades fronteiriças (borderline)


 De um modo geral, o falso self tem uma função, porém, quando as falhas ambientais ocorrem repetidamente e o falso self se estabelece na base da submissão, é possível que ocorra um falso self patológico. Este é o caso de indivíduos que tiveram que organizar um falso self para lidar com o mundo e essa fachada acaba se transformando numa defesa para o verdadeiro self, ou seja, “o verdadeiro self foi traumatizado e não pode mais ser encontrado, pelo risco de ser novamente ferido (...) embora o falso self seja uma defesa eficaz, não é um componente da saúde” (Winnicott, 1967/2011, pp. 16-17).

De acordo com Winnicott (1960/2022) o falso self pode ser classificado da seguinte forma:


1.     Em um extremo – o falso self se instala como real e as pessoas que convivem com o indivíduo acreditam que o que elas estão observando é a pessoa real. Porém, com o tempo, esse falso self começa a falhar e em alguns momentos, carências essenciais emergem em situações em que se espera a atuação de um indivíduo inteiro. Por conta disso, esses indivíduos não conseguem se relacionar de uma forma mais íntima. É possível observar uma falta de sentido pessoal, de criatividade e de espontaneidade.

2.     Menos extremo – o falso self defende o self verdadeiro e esse self verdadeiro é percebido se apresenta numa vida secreta. Neste caso, o viver verdadeiramente não pode ser compartilhado com o outro, já que há um alto grau de desconfiança em relação ao outro.

3.     Mais próximo da normalidade – aqui o falso self vai tentar procurar condições para que o verdadeiro self possa emergir. O falso self procura um cuidador para o verdadeiro self. Caso não seja possível encontrar as condições favoráveis e/ou o cuidador, novas defesas serão reorganizadas, tendo, desta forma, um grande risco de suicídio. “Suicídio nesse contexto é a destruição do self total para evitar a aniquilação do self verdadeiro” (Winnicott, 1960/2022, p. 181).

4.     Ainda mais próximo da normalidade – o falso self será construído com base em relações reais, sobre identificações.

5.     Na normalidade – o falso self se apresenta de forma mais integrada aparecendo como atitudes sociais civilizadas e educadas e sem sacrificar o self verdadeiro.


Cabe ressaltar que muito do que foi teorizado por Winnicott a respeito do falso self deriva não só das observações que ele fazia como pediatra, mas também de uma série de casos borderline que ele tratou na clínica (Winnicott, 1960/2022; Winnicott, 1963/2022). Como já dito anteriormente, o paciente borderline possui um tipo de organização suficiente para lidar com as demandas sociais (Winnicott, 1968/1994), ou seja, há um falso self desenvolvido que pode se apresentar de acordo com as classificações de falso self descritas acima. Winnicott (1967/1994, p. 155) relata “comecei a ver a esquizofrenia e, especialmente, a enfermidade do caso borderline como sendo uma sofisticada organização de defesa”.

Nos casos borderline, é marcante a dependência do paciente (Winnicott, 1959/2022), pois é como se esses indivíduos necessitassem de uma experiência com alguém capaz de acompanha-los na constituição de seu self verdadeiro (Hegenberg, 2021). Tanto é o caso, que Winnicott relata o quanto essa dependência pode, inclusive, sobrecarregar o terapeuta e fazer com que a técnica clássica tenha que ser adaptada (Winnicott, 1963/2022; Winnicott, 1960/2022). Em um de seus textos, Winnicott (1967/1994 p. 156) diz “nenhum tratamento de casos borderline pode achar-se livre de sofrimento, tanto do paciente quanto do terapeuta”.

Assim, é possível pensar que no caso de um indivíduo borderline, não houve um ambiente suficientemente bom e que propiciou ao bebê a possibilidade de atingir um estado de relaxamento e uma sensação de segurança. Para o bebê se sentir seguro e para que seu impulso instintual seja tido como real é preciso que ele possa se apoiar no ego da mãe suficientemente boa, desta forma a ilusão de onipotência pode ser preservada e o indivíduo não sentirá o seu verdadeiro self ameaçado. Em um texto de 1958, Winnicott afirma que

“a capacidade de ficar sozinho depende da existência de um objeto bom na realidade psíquica do indivíduo (...) a relação do indivíduo com esse objeto interno, junto com a confiança quanto às relações internas, lhe dá autossuficiência para viver, de modo que ele ou ela é capaz de passar algum tempo descansando contente mesmo na ausência de objetos ou estímulos externos” (Winnicott, 1958/2022, p. 38).

Desta forma, não é absurdo pensar que essa dependência que o indivíduo borderline possa apresentar, principalmente com relação ao seu terapeuta, esteja relacionada a uma angústia de aniquilação do self verdadeiro e do desenvolvimento de uma defesa do tipo falso self que anseia pelo cuidado do outro.

 

Considerações finais


 Os casos borderline serviram como matriz clínica para Winnicott desenvolver diversas teorias relacionadas ao desenvolvimento emocional primitivo, especialmente os conceitos de verdadeiro e de falso self. Esses conceitos têm uma grande importância para o entendimento e prática na clínica de pacientes psicóticos e borderline. É importante considerar as peculiaridades da defesa do tipo falso self, que pode fazer com que o indivíduo apresente um eu irreal como real. Esses indivíduos, de início, podem apresentar um comportamento de adulto, mas ainda não se sentem completos, existindo. Esse fato pode influenciar no trabalho clínico dos pacientes borderline e, se não for considerado, pode levar a tratamentos muito longos e muito frustrantes. Esses indivíduos necessitam de uma experiência com alguém capaz de acompanhar na constituição de seu self. O trabalho terapêutico só poderá ter sucesso caso o terapeuta consiga ter contato com o verdadeiro self do paciente, mas para isso, é preciso que o terapeuta forneça um holding adequado que possibilite o falso self abrir espaço para que o verdadeiro self possa ser cuidado.

 

Referências bibliográficas


Hegenberg, M. (2021). Borderline. Belo Horizonte: Artesã, 2021.

Naffah Neto, A. (2007). A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline: revisitando Winnicott. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(4), 77-88.

Winnicott, D. W. (1952). Psicoses e cuidados maternos. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise (pp. 393-407). São Paulo: Ubu Editora, 2021.

Winnicott, D. W. (1958). A capacidade de ficar só. In D. W. Winnicott, Processos de amadurecimento e ambiente facilitador (pp. 34-43). São Paulo: Ubu Editora, 2022.

Winnicott, D. W. (1960). Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica?. In D. W. Winnicott, Processos de amadurecimento e ambiente facilitador (pp. 155-176). São Paulo: Ubu Editora, 2022.

Winnicott, D. W. (1960). Distorção do ego em termos de self verdadeiro e falso self. In D. W. Winnicott, Processos de amadurecimento e ambiente facilitador (pp. 177-194). São Paulo: Ubu Editora, 2022.

Winnicott, D. W. (1963). Distúrbios psiquiátricos nos processos de amadurecimento infantil. In D. W. Winnicott, Processos de amadurecimento e ambiente facilitador (pp. 296-311). São Paulo: Ubu Editora, 2022.

Winnicott, D. W. (1965). Introdução. In D. W. Winnicott, Processos de amadurecimento e ambiente facilitador (pp. 11-12). São Paulo: Ubu Editora, 2022.

Winnicott, D. W. (1967). O conceito de regressão clínica comparado com o de organização defensiva. In D. W. Winnicott, Explorações psicanalíticas (pp. 151-159). Porto Alegre: Artmed, 1994.

Winnicott, D. W. (1967). O conceito de indivíduo saudável. In D. W. Winnicott, Tudo começa em casa (pp. 3-220). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

Winnicott, D. W. (1968). O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações. In D. W. Winnicott, Explorações psicanalíticas (pp. 171-177). Porto Alegre: Artmed, 1994.

Winnicott, D. W. (1988). Estabelecimento da relação com a realidade externa. In D. W. Winnicott, Natureza Humana(119-185). Rio de Janeiro: Imago Ed, 1990.

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