Aqui, regressamos a um dos assuntos mais fundamentais na problematização da leitura de Freud: a intenção com que o autor escrevia alguns de seus textos, de escapar à tangente de críticas e reducionismos de seu período que, por sua vez, determinava um estilo bastante característico de explicitar ideias. A Psicanálise enfrentou duras críticas (e infelizmente ainda enfrenta) para conquistar e consolidar um espaço de confiabilidade nas ciências da época. Como reagimos ao novo? Qual é o dispêndio psíquico que nos é exigido perante o desprazer do que nos é diferente? Por que repudiamos a mudança? Estes são alguns dos questionamentos que nos despertam a leitura dos primeiros parágrafos do texto. Também podemos perceber uma grande preocupação do autor em nos deixar curiosos quanto ao que ele estaria se referindo: será com relação à recepção da ciência à emergência do saber psicanalítico?
Como podemos imaginar, é própria do estatuto das ciências naturais a constante renovação de axiomas e teses que fundamentam, bem como sua evidente falibilidade e constante incerteza. Nada disso, portanto, impele repúdio por parte do que é novo. Esta afirmação é incongruente? Como haveria da ciência repudiar aquilo que lhe é atual? É que ela não deseja ser enganada, pois nem tudo que é novo é bom. A ciência é desconfiada, cética. Segundo Freud, este ceticismo é perfeitamente justificável, mas pode apresentar dois caminhos inesperados: pode posicionar-se contra aquilo que lhe é novo, enquanto poupa aquilo que lhe é familiar e já aceito; assim como também pode negar aquilo que lhe é novo sem ter procurado conhecê-lo mais a fundo. Ao tomar estes caminhos, a ciência posiciona-se ao lado da reação primitiva de repúdio ao que é novo. A Psicanálise promoveu um corte epistemológico brutal em seu período, que feriu vários campos do conhecimento. O que o presente texto fará será esmiuçar as razões pelas quais houve oposição à Psicanálise, e não meramente sua forma. Comecemos a enumerar os motivos que levou a comunidade acadêmica ir contra a psicanálise:
1 – Origem da afecção neurótica:
“Eles haviam sido ensinados a respeitar apenas fatores anatômicos, físicos e químicos. Não estavam preparados para levar em consideração fatores psíquicos, e portanto, enfretaram-nos com indiferença ou antipatia” (Freud, 1924b, pp. 241). Esta frase resume excelentemente a razão que levou os médicos a desacreditar causas psicogênicas para o adoecimento da neurose, fato esse que demonstra uma base epistemológica mecanicista regendo a práxis médica. As neuroses eram somente consideradas distúrbios corporais, estados tóxicos, encarados como imposturas e o hipnotismo como uma grande mentira, enganação. A partir dos experimentos de Charcot e observações de Breuer pôde-se verificar que também são processos mentais (portanto, hipnotizando o paciente era possível produzir os sintomas somáticos da histeria, sendo assim, a psicanálise começou a considerar o problema como pertencente à natureza dos processos psíquicos). Os médicos também tinham uma grande resistência em aceitar o conceito de inconsciente, atribuindo, em sua esmagadora maioria, os fenômenos mentais como unicamente consciente.
2 – Divergência quanto ao objeto de estudo da psicologia:
Este tópico refere-se a um conflito entre a psicologia e a filosofia, especificamente.
“A idéia de filósofos sobre aquilo que é mental não era a da psicanálise. A maioria esmagadora deles vê como mental apenas os fenômenos da consciência. Para eles, o mundo da consciência coincide com a esfera do que é mental. Tudo o mais que possa se realizar na mente (…), é por eles relegado aos determinantes orgânicos dos processos mentais ou a processos paralelos aos mentais.” (Freud, 1924b, pp. 242)
Ora, se o mental é o consciente para os filósofos, para a Psicanálise, o mental refere-se justamente ao contrário! O mental pertence à esfera inconsciente. Introduzir o inconsciente como célula estruturadora da psique era, certamente, uma afirmação de peso, que implicaria numa revisão tanto do caráter epistemológico do sujeito (referente à possibilidade de produção de conhecimento do sujeito) quanto do caráter ontológico dele (concernente à maneira dele de existir no mundo).
A justificativa de Freud para estes dois modos de conhecer (o psicanalítico e o filosófico) deve-se ao fato de que o filósofo jamais dispôs dos dados que o psicanalista pôde se servir para construir suas bases, isto é, não haveria meios, para a época, de acreditar em atos mentais inconscientes sem um mínimo conhecimento dos efeitos da hipnose ou da interpretação dos sonhos.
Assim, o que notamos? Notamos uma Psicanálise que é fronteiriça entre dois terrenos cruéis: o da medicina, representante da ciência, que vê a Psicanálise como pura especulação; e o da filosofia, que se nega a crer na clareza dos apontamentos psicanalíticos, acusando-os de partirem de premissas impossíveis.
E quanto ao escárnio evidente que toda grande teoria recebe? Lembremo-nos que Charles Darwin, ao dizer que a humanidade tinha como antepassados os mesmos seres que deram origem aos macacos, também sofreu um bocado. Pois bem, quando Freud pôs em voga a eminência da sexualidade na vida mental humana, muito lhe foi dito de denegridor e incorreto. Com frequência, insistiam em culpar Freud por uma série de afirmações que ele mesmo não havia dito. Sua definição de sexualidade, por exemplo, não é uma mera resultante do prazer genital, mas bastante próxima do conceito de Eros, introduzido por Platão, em sua obra O banquete. Contudo, a introdução de Freud sobre a nova visão da sexualidade, principalmente a infantil, caíram na sociedade como uma agressão à dignidade humana (agressão esta à falta moral social, a uma hipocrisia social). Justamente a nova teoria freudiana falava de recalques e repressões cutucando os mesmos recalques e repressões de quem as ouvia. Aceitar a Psicanálise como ciência significava aceitar a sexualidade infantil, algo muito chocante, que pouco havia sido debatido na época. E mais, significava refletir sobre as reivindicações insatisfeitas que são feitas sobre nossos instintos, que por sua vez, resultam no sentir constante da pressão das exigências da civilização e, consequentemente, questioná-las.
Sobretudo, o caráter pulsional que as produções culturais, científicas e religiosas da humanidade (todos esses produtos sublimatórios) adquiriram em Freud foi mal interpretado. Em momento algum de sua obra, inclusive, Freud defende a sexualidade humana enquanto pansexual, mas dualista.
Afinal, como Freud procurou responder a essas questões? Para responder tal questão, inauguraremos um novo tópico:
3 – Más interpretações acerca do primado da sexualidade na teoria psicanalítica:
Segundo Freud, a humanidade encontra-se sustentada por dois pilares valiosos: o do controle das forças naturais e o da repressão da sexualidade. Quanto à última: “A sociedade está ciente disso – e não permitirá que o assunto seja mencionado” (Freud, 1924b, pp. 244) e “a sociedade sustenta um grau elevado de hipocrisia cultural” (Freud, 1924b, pp. 245). A repressão que falamos refere-se ao fato de que para vivermos socialmente, devemos sempre realizar concessões que fundamentalmente refere-se à nossa sexualidade. E especialmente à sexualidade genital para com nossos familiares.
O que vemos se desvelando no dizer de Freud é uma crítica contundente à moralidade, moralidade essa que duramente criticou o primado da sexualidade para a Psicanálise e que é justamente o fruto desta repressão tão exacerbada. O momento histórico de Freud (e talvez o nosso…), que prenunciava a modernidade em vários aspectos, estava sendo posta em jogo, e por isso encontrou resistências por parte das pessoas de sua época.
Outro fator de ojeriza social à Psicanálise foi a nova visão de infância que propunha: uma infância sexuada, perversa e polimorfa quanto aos seus objetos de prazer. Que escândalo, crianças se masturbando! E quanto ao Complexo de Édipo? Desejos sexuais pelo progenitor do sexo oposto e desejos de assassinato e agressão ao progenitor de mesmo sexo? Cremos que essas afirmações, proferidas em uma sociedade de um século atrás, sejam auto-explicativas quanto à celeuma que causaram. E agora, pensemos: uma teoria que procurou trabalhar justamente com aquilo que havia sido jogado para debaixo do tapete; aquilo que, segundo Laplanche, esconde-se das crianças… A principal resistência a ela haveria de ser, sobretudo, emocional!
Freud encerra seu texto lembrando-nos do potencial disruptor de outros teóricos anteriores a ele: Darwin, que havia retirado o ser humano do centro da biologia, e Copérnico, que havia arruinado o sistema geocêntrico, retirando o planeta Terra do centro do universo. E Freud, que ferida narcísica havia realizado? A de retirar a o ser humano do centro de si mesmo, ao propor o inconsciente.
Como haveria da Psicanálise sobreviver a tantas críticas? Preocupemo-nos com esta questão num outro momento.
Maria Martha Gibellini
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