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Análise do filme Psicose, com apoio da série Bates Motel

Atualizado: 3 de mai. de 2020

O filme Psicose (1960), do aclamado diretor Alfred Hitchcock, baseado na obra homônima de Robert Bloch, conta a história da jovem Marion que, após roubar uma quantia de dinheiro de seu patrão, foge. Ao pernoitar em um hotel de beira de estrada, Bates Motel, é supostamente assassinada pela misteriosa proprietária do local, Norma Bates. Durante a obra, descobre-se que o assassino é na realidade Norman, filho de Norma, que sofre de grave distúrbio psicológico-psiquiátrico e assume uma personalidade assassina da própria mãe.


A série Bates Motel (2013) conta a história dessa família antes do filme de Hitchcock. A cena inaugural é a morte do pai, um homem violento. Posteriormente, descobre-se que o assassinato foi cometido por Norman, em um ato em defesa da mãe. Contudo, o jovem sofre de lapsos na memória diante de situações muito traumáticas e não se lembra do ocorrido. Esses lapsos podem ser explicados pela teoria freudiana do traumático. O trauma ocorre diante de um ocorrido que não pode ser significado/inscrito pela pessoa no momento, ou seja, pela incapacidade do sujeito de reagir a um acontecimento de forma adequada. “O traumatismo caracteriza-se pelo afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente essas excitações” (LAPLANCHE, PONTALIS. 2001, p. 522). Dessa forma o trauma elicia uma ruptura psíquica, o que explica os lapsos de Norman.


Norma, nessa situação, simula um acidente para explicar a morte do marido e resolve se mudar para outra cidade, onde ambos poderiam “ter um novo começo”. Eles compram um hotel, o Bates Motel. Descobrem, no entanto, que a estrada de acesso ao estabelecimento será desativada e, com esse isolamento geográfico, ambos convivem quase que exclusivamente um com o outro, numa relação de mútua dependência. A partir desse contexto, a relação de Norma e Norman fica extremamente intensa e patológica.


É possível traçar um primeiro paralelo à teoria do Complexo de Édipo de Freud, que consiste na ideia da existência de um desejo incestuoso da criança pela mãe e do ódio que a interferência do pai causa nessa relação tríade (pai-mãe-filho). Norman vence a disputa com seu pai no momento em que realiza seu desejo de eliminá-lo. Com a saída do pai, Norman não precisa mais disputar a mãe, tendo-a só para si. A partir disso, ele passa a ocupar o lugar de falo de Norma, ou seja, o lugar de completude e satisfação total dela.

Na ausência da introdução do significante nome-do-pai, não há a introdução de um terceiro que interdite a relação mãe-e-filho. O pai simbólico de Norman não existe. Ele é o tudo da mãe.


A psicose se estrutura justamente nesse contexto de não introdução de um terceiro indivíduo no Complexo de Édipo, na não castração da criança, na qual ela acredita ser o falo da mãe. Começa a se tornar claro que Norman é um forte candidato a uma estrutura de personalidade psicótica.


Esse lugar de pai interditor deve ser preenchido por algum outro desejo da mãe. O bebê, se for único objeto de investimento libidinal da mãe, acaba ocupando todo o espaço da vida dela. Ele vive na posição de gozo, sendo eleito como a única coisa importante para ela, o que impede a inscrição da castração, ou seja, da falta.  É preciso, para desenvolver uma estrutura de personalidade neurótica, deixar de ser objeto para ser sujeito, algo que Norman nunca conseguiu. Norman fica, então, alienado no desejo do outro, aprisionado no desejo materno de completá-la, impedindo que ele se constitua como um sujeito unificado.


Essa relação simbiótica fica ainda mais explícita ao observarmos seus nomes: Norma e Norman. A relação fusional não está apenas no convívio, mas se inicia muito antes, quando, ao dar à luz, Norma nomeia seu filho com seu nome, diferenciando apenas o final com uma letra a mais, que não coincidentemente é a repetição da primeira letra do nome. Isso sugere a imagem de um círculo, que não tem fim e retorna inevitavelmente para ela. Eles são uma continuação ou extensão um do outro, suas existências e personalidades se confundem.

Essa co-dependência aparece no primeiro episódio da série, em que eles trocam o seguinte diálogo:


(Norma): “Todas as pessoas que eu conheci não prestam, menos você. Você é demais para mim. Quando você nasceu foi como se Deus estivesse me dando uma segunda chance.”

(Norman): “Mãe, você é tudo. Tudo pra mim. Toda minha família, toda minha vida, todo o meu ser. Sempre foi. É como se houvesse uma ligação entre nossos corações. Somos eu e você. Sempre foi eu e você. Pertencemos um ao outro.”


A falta de outras relações contribuiu muito para que a personalidade de Norman fosse moldada apenas pela sua mãe, sua única família. Sua sexualidade não foi diferente, também desviada para ela. Isso estabeleceu uma relação incestuosa entre os dois: Norman queria ter sua mãe sexualmente. Desejo agravado pelo comportamento ciumento e possessivo de Norma em relação ao filho, impedindo que ele canalizasse seus desejos sexuais para qualquer outra pessoa.


Esse traço incestuoso na relação faz com que Norman se sinta traído e rejeitado pela mãe quando ela começa a namorar. Ele não consegue elaborar a frustração de não ser o falo da mãe, ou seja, dela estar investindo em mais alguém que não ele. O psicótico se defende da realidade atacando-a. Norman ataca aqueles que não sustentam seu delírio – ser o falo de Norma. O delírio caracteriza-se como uma tentativa de dar sentido ao que está vivendo. Numa tentativa de negar a realidade e de defesa contra sua desestruturação Norman mata ambos, mãe e padrasto.


Contudo, ele também não é capaz de lidar com a morte de sua mãe, afinal eles vivem em uma relação de mistura e de simbiose. Se a mãe morre, ele também morre. Norman, então, rouba o corpo da mãe do caixão e o conserva via taxidermia. A negação da morte de sua mãe é tão grande que ele age como se ela ainda estivesse viva, trazendo-a para sua mente, falando como e com ela e vestindo suas roupas. A estrutura psicótica de Norman permite que ele crie uma nova realidade para não entrar em contato com a morte de sua mãe. Assim, a relação simbiótica de Norman e Norma possibilitou sua não constituição como sujeito cindido e unificado, levando à uma fusão das personalidades demonstrada em seu delírio.


Na psicose o corpo é permeável, ou seja, o sujeito sofre de transparência e de uma falsa unidade, pois sua imagem é fragmentada. Uma vez que Norman é a completude da mãe, ela não o reconhece como sujeito singular e ele, consequentemente, não forma uma unidade unificado do eu (afinal, seu parâmetro de outro é apenas a mãe).


Na série é construído o primeiro momento em que Norman se veste com as roupas de Norma e pensa ser ela. Essa cena ocorre após uma briga entre os dois, na qual pensa em abandoná-la e morar com o irmão. Norma não tolera a ideia e decide sair de casa. O filho não consegue suportar sua ausência, sentindo-a como abandono. Uma vez que a discriminação entre eles, para ele, é muito sutil, seria como se um pedaço seu houvesse partido. Para suportar essa dor, ele mantem a presença dela na casa.


Norman permanece vivendo sozinho após a morte da mãe, mantendo sua dupla personalidade. Com a chegada de Marion no Bates Motel, sua parcela Norma exacerba-se. Norman se sente fortemente atraído por Marion e, ao mesmo tempo, culpado por esse desejo porque a Norma em Norman sente ciúmes de Marion. Uma vez que a separação entre os dois é quase imperceptível, é esperado de Norman ter a crença de que sua mãe sentia por ele o mesmo que ele sentia por ela, nesse caso, o ciúme. Além disso, a postura controladora e possessiva de Norma em relação ao filho contribuiu provavelmente para sua personalização ciumenta. Assim, Norman mata Marion.


Sempre que uma mulher se aproxima dele, a censura sexual imposta pela sua mãe vem à tona. Não desejando matar essas mulheres que despertam seu desejo, mas respeitando sua crença no ciúmes da mãe, Norma assume a autoria de outros assassinatos que Norman comete na série. Uma característica presente na estrutura psicótica e, consequentemente em Norman, é a certeza e o não sofrimento com dúvidas. Norman não coloca em pauta o ciúme da mãe, não há espaço para indagações, apenas para convicções. Isso se une ao conceito errante, desenvolvimento por Contardo Calligaris, que defende a ideia da estagnação do psicótico. Afinal, nos movemos pelo desejo, pela incompletude e pela falta, coisas ausentes nessa estruturação.


A psicose é o momento mais visível do que no senso comum chamamos de “loucura”, pois rompe com a realidade compartilhada, uma vez que há um investimento maior no próprio sujeito (eu) do que nos objetos externos (no mundo). Dessa forma, o psicótico fica preso no imaginário (segundo a tópica lacaniana), ou seja, na completude, e há uma ausência do simbólico, isto é, da ambivalência e da interdição. Isso pode levar a uma precariedade da relação com o mundo.


Esses aspectos podem ser vistos no filme Psicose, mais especificamente no personagem de Norman, um sujeito isolado e por vezes considerado “esquisito” pelos colegas da escola (visto na série Bates Motel), justamente pelo seu embotamento afetivo e dificuldade de relacionamento com o sexo oposto.


Logo, o clássico filme retrata uma trágica história de psicose, como o próprio título sugere. Foi uma obra que, além de marcar o cinema com suas inovações técnicas no gênero do terror, também trouxe à tona um tema marginalizado pela nossa sociedade através do personagem de Norman: a psicose.


Escrito por Maria Martha Gibellini




Bibliografia:


O’SHAUGHNESSY, Edna. Conferências clínicas sobre Klein e Bion, Capt. 7 Psicose: o não pensar num mundo bizarro. Rio de Janeiro, 1994. p. 103 a 116. Ed. Imago.


AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação: do Pictograma ao Enunciado, o espaço no qual a esquizofrenia pode constituir-se. Rio de Janeiro, 1979. p. 184 a 201. Ed. Imago.


VIOLANTE, Maria Lucia; HORNSTEIN, Luis. Desejo e Identificação, Diálogo com Piera Aulagnier. São Paulo, 2010. Ed. Annablume.


DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan, Capt. 9 A prevalência do falo. Porto Alegre, 1989. p. 71 a 88. Ed. Artmed.


CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das Psicoses: o inconsciente estruturado como linguagem, A estrutura psicótica. São Paulo, 2013. p. 13 a 21. Ed. Zagodoni.


HORSTEIN, Luis; HALPERIN, Silvia. Introdução à Psicanálise, A constituição do eu. São Paulo, 1989. p. 43 a 47. Ed. Escuta.


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