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Foto do escritorEquipe Companio

Amor e Morte nos Tempos do Corona

Atualizado: 3 de mai. de 2020


Um jovem jardineiro persa diz para seu príncipe:

— Salve-me! Encontrei a Morte esta manhã. Fez-me um gesto de ameaça. Esta noite, por um milagre, gostaria de estar em Isfahan.

O bondoso príncipe lhe empresta seus cavalos. De tarde, o príncipe encontra a Morte e lhe pergunta:

—Por que, esta manhã, fez um gesto de ameaça a nosso jardineiro?

— Não foi um gesto de ameaça – responde-lhe –, mas um gesto de surpresa. Pois o via longe de Isfahan esta manhã e devo pegá-lo esta noite em Isfahan.

- Jean Cocteau



         Na abertura de Amor nos Tempos do Cólera, Márquez nos avisa no primeiro capítulo, não, antes, no título mesmo, que a sua não é tanto uma narrativa do Amor invencível contra todas adversidades como é uma história sobre o amor em um tempo, na marcha do tempo, inexorável, e na ainda mais inexorável morte, sua companheira, e, por fim, aliada. Se engana quem busca a eternização do amor concretizada pela paixão de meio século entre os dois personagens principais Florentino Ariza e Fermina Daza: a história do amor superando a morte é tema, mas não é a solução no livro. Sim, paixão adolescente de Florentino resiste cinquenta anos, atravessa a incerteza, a rejeição e o casamento da amada com outro, perdura pela virada do séc. XIX e sobrevive, é claro, ao cólera que assolava a região, assim como à guerra civil, e à cruel desigualdade social legada pelo colonialismo espanhol. Sim, a história é de amor como bem sugere a primeira metade do título, mas é também a história da Morte como bem sugere esse tempo personificado, o Tempo do Cólera, que é tempo, sempre a passar, pois a velhice vem como uma sombra para ambos os personagens, e o Cólera, já que doença e Morte são mais bem uma condição cotidiana do que um acontecimento notável no nostálgico Caribe de Márquez.

     Assim, insuspeitadamente, Amor e Morte são os dois personagens principais desse romance e “os tempos”, seu lugar. Nos tempos do Cólera desse realismo quase fantástico, Eros e Thanatos se engalfinham na cama, se confrontam, se confundem ou se evitam, mas não se ignoram. Como poderiam se são parentes, quase gêmeos ao primeiro olhar? “Os sintomas do amor são os mesmos do cólera” lembra o ancião homeopata revelando a Florentino Ariza este parentesco esquecido na rinha diária pela sobrevivência. É claro que o amor confronta a morte e justifica a vida, pois é em seu nome que nosso herói enfrenta os anos de solidão e a idade avançada: vive somente pelo amor a Fermina Daza. Ela, entretanto, não corresponde. Acha que se trata de uma ilusão e nada mais. Contrariado, Florentino persiste e faz de tudo para se tornar alguém que Fermina possa amar. E creio que toda a mensagem está aqui: no tornar-se. O amor que permite transformação, mudança, que aceita as perdas para poder se satisfazer nos ganhos, que aceita a morte para poder satisfazer a vida, Florentino não o sabe de início, mas este será seu caminho.

       É que o amor de Márquez dá trabalho.

     Assim, o pobre Florentino descobre cedo demais que amor não é coisa pronta que se jure e basta, assim como Fermina, de sua parte, cedo descobre que o amor e o casamento exigem esforço para se manterem vivos, que o simples “sim” do altar não garante uma vida conjugal feliz de antemão, que o amor se esvai e definha se mal cuidado. Como a gente o amor morre de doença, de velhice ou de desgosto, como a gente pode matar contrariado e colérico. Aferrado ao amor Florentino vive como se não fosse morrer, como se seu amor fosse durar incólume por toda a eternidade, assim como sua amada. Só ao final descobre que o amor púbere que nutrira como sagrado durante décadas já não tem lugar, que ele mesmo já não tinha 17 anos e que se era para o amor florescer ainda, teria de ser um novo amor, com um já idoso Florentino e uma idosa Fermina Daza. Só na morte do amor idealizado e infantil pôde nascer um amor menos febril, mais maduro, vindo das cinzas do antigo e só essa novidade pôde por fim iluminar o crepúsculo dos anos dos nossos heróis combalidos pela idade. É a lei do Amor querer se perpetuar, evitar seu próprio fim, mas é a morte que vem ao final lhe dar como acabar, e às vezes se renascer e se transformar para não imitar a tumba do Taj Mahal, um monumento de si próprio onde apodrece eternamente a ideia da pessoa amada, enquanto o amor vivido se esvaiu, no tempo sempre perdido de um passado que não adianta buscar.

      Nos falta amor nos tempos do coronavírus? Não acho, pelo menos não desse amor embalsamado. As tumbas em sua homenagem estão por toda a parte, na Avenida Paulista marcham seus arautos em verde e amarelo carregando caixões para lembrar que a morte para eles não passa de uma piada engraçada. Esses senhores (surpreendentemente) amam: se amam demais e amam demais o líder com quem se identificaram, (se) amam demais para ver na esquina a derrocada política de seu chefe e a derrocada adoecida de seus corpos (provável frente aos riscos ampliados de contágio que as aglomerações causam). Há uma celebração embrutecida de uma realidade passada que hoje já não é mais possível. Como nas guerras civis de Márquez, o Brasil do nosso atual fantástico realismo também vive confrontos políticos, também vive uma praga, também vive o peso brutal da exacerbação da desigualdade mantida pelo amor narcísico dos corretamente autodenominados conservadores, que cultuam o cadáver em picles de uma sociedade repressora que, por sorte, já não existe mais. O amor nada quer saber da morte, quer eternidade para si e por isso se desdobra para não ver o fim do que ama ou seu próprio.

        O fato é que apesar dos românticos (e muito por sua causa) o amor não é sempre belo e é mesmo por vezes obcecado quando se perde no engano da sua própria pretensa eternidade. São os “espelhismos” (espejismos) que Márquez relembra sempre quando fala do amor, exemplificados com maestria quando Florentino coloca no quarto de sua casa o espelho onde vira Fermina Daza se refletir por apenas uma noite na qual nem se atentara para a presença do amante secreto a espiona-la. Esses monumentos de um amor ensimesmado, que em nome de sua continuidade teima em tentar persistir idêntico e eterno mesmo quando já fermenta e se transforma em carcaça, nos lembram o poder da ilusão especular onde Narciso se fixa e morre imobilizado em estado de graça. Como é terrível o amor num espelho em que o tempo não passa! Dessa perspectiva o amor do idêntico, puro e simples, o amor do infinito sem o novo, é só uma morte mais lenta, a morte na catatonia imóvel de quem não quer perder a imagem eterna de si, ou do outro (que importa?), num belo espelho caríssimo do período colonial (quem quer conservar a colônia Brasil?).

     Nos extremos o Amor que se quer infinito fugindo da morte exatamente a morte encontra em seu caminho como que por acaso, mas realmente como um destino. É que o amor que se ilude na eternidade morre enrijecido e paralisado na pose de glória do seu passado conseguindo bem o que seu orgulho mais queria: morto se torna “eterno”, ninguém vai vê-lo ruir. Como o jovem personagem de Cocteau que foge para Isfahan quando vê a morte em sua cidade natal só para encontra-la de noite em Isfahan esperando-o, o amor puramente espelhado, monumental e nostálgico é uma ilusão que ao fim nega a vida tentando salva-la a qualquer custo. Para fugir da própria morte abraça-a sem querer num narcisismo mortífero sem lugar para a diferença. Pois, escapando o Amor se junta à Morte no ato mesmo de afasta-la: ao fim da fuga há um espelho e os gêmeos se confundem num reflexo, idênticos.

     Mas para Márquez não é tudo pessimismo. De certo não se deve somente abrir mão do amor e de seu espelhismo como se sua face única fosse a de pernicioso assassino da vida escondida sob o manto de uma eternidade falsa. Sim, o amor é a maior das ilusões ensina Márquez, mas isso não é motivo para nos privarmos de vive-lo. Por ele nos enganamos e sofremos, mas também por ele vamos além, por ele seguimos vivos. O Amor, nessa batalha contra o fim (da vida e seu próprio), na competição com a morte, pode, sim, justificar– às vezes – a vida. A mesma força de ilusão que pode nos enredar na mumificação estática do Taj Mahal pode também usar sua potência preservativa para criar, para nos salvaguardar do pior, nos oferecendo sentido e um pingo da doce eternidade ilusória que permite encarar os fins amargos inerentes à vida. E aqui uma boa dose de “espelhismo” é do mais saudável para que continuemos criativos, vivos e produzindo frente às inevitabilidades do Destino: tudo morre, sim! Mas amamos a vida, amamos amar, amamos o outro e amamos a nós mesmos nesses espelhos também, por que não? Ainda há de nascer um artista, um estadista ou escritor inventivo que não tenha um quê de narcisismo, pois é necessário amar, e consequentemente, se iludir com o sabor da eternidade se queremos viver para encarar de frente o fim e não desistir de criar mesmo que seja só para assistir a criação ruir no Tempo infinito.

      O Corona é uma desgraça, uma tragédia, sim, das mais terríveis, mas fazendo-nos ver o fim é uma oportunidade para que concedamos maior valor à vida. Forçados a encarar a catástrofe, a doença, a morte e uma realidade cada vez mais sofrida, temos a chance de olhar a morte nos olhos e nos perguntar: Que tipo de vida estamos vivendo nos enganando, agindo como se a morte não existisse? Que tipo de vida estamos vivendo ao ignorar sempre o Terrível, a peste, a desigualdade e o sofrimento de milhares em condições de subemprego, vivendo de salário em salário, a mercê de qualquer crise imprevista? Freud diz que nossa própria morte é impossível de conceber, pois sempre a imaginamos de fora (pelo olhar dos outros), ou como um “escuro” ou uma representação batida de vazio. Talvez não enxergar a verdade toda e se inebriar um tanto de amor (próprio, alheio, que importa) justifica ficar um pouco mais aqui na vida, e justifica faze-la valer, recria-la e preserva-la enquanto não nos fomos ainda.

    Frente ao cinismo dos que amam seus espelhos coloniais, e fazem de tudo para que nada nunca mude neste país, frente aos que não enxergam a morte, seja a própria morte, ou a morte e o sofrimento que seu sistema infringe cotidianamente sobre os menos favorecidos, temos que encarar o Desastre pelo menos uma vez com todo o medo e respeito merecido para dizer-lhe: “sim, você existe!”. Não há como escapar, mas ainda assim a realidade da morte não é justificativa para negar a vida. O fim é inevitável, nossos amores e nossas criações mais grandiosas vão um dia sumir, mas isso não implica que devemos nos render assim em silêncio só porque o amor não vai vencer a morte definitivamente ao cabo e ao fim. Nada justifica as tragédias cotidianas, seu horror, sua feiura e, no fundo, sua falta de sentido. Contudo, inversamente, se não fugirmos de finalmente encara-la e ouvi-la, a tragédia pode quem sabe vir a justificar a vida, ou no mínimo abri-la para o novo, que está para nascer ainda quando nos permitirmos olhar finalmente a catástrofe e a ruína em vez tentar dela nada saber numa cegueira autogerida.

     Márquez acredita que Eros e Thanatos podem, sim, se reconhecer sem se confundir nos espelhismos idealistas. Seu duelo tem lugar para as tréguas e concessões de dois amigos circunstanciais para além dos golpes baixos e das traições sorrateiras de dois eternos inimigos. Num tácito pacto de cooperação em nome de uma vida criativa, nesse caso, em nome de um amor que possa amar também seu próprio limite, sabemos que foi possível um amor que valoriza a vida, um amor que se deixa morrer para se transformar em novo, mesmo nos tempos do Cólera. E para nós, em tempos de coronavírus? Nos aferramos ao que temos, sem querer nada da Morte saber? Ou a encaramos de frente, amando nosso destino terrível para que ele possa dar lugar ao novo?

    Só o tempo (sempre ele) dirá, mas talvez depois de tanta tristeza e tanto sofrimento, quando virmos a morte podemos reconhece-la com menos surpresa, com o saudável medo de quem vê um velho inimigo com a familiaridade das cicatrizes por ele deixadas, mas com a certeza de que tem muito a ensinar ainda se nos atrevermos a encarar sem baixar a guarda, se aprendermos a encarar com amor que somos finitos. Foi ele, o Amor, que nos trouxe até aqui e mesmo que acabe (e porque acaba) esse é o maior motivo para valoriza-lo, valorizar a mudança, a vida que não é eterna, a vida que se ama, que ama a mudança, ama o próximo e que se ama também no tempo, sempre no Tempo da Morte, sempre no tempo da finitude, mesmo agora nesses tempos difíceis de coronavírus.


Escrito por Daniel Modós


HOCKNEY, David. O Retrato de um Artista (Piscina com Duas Figuras), 1972.


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