Antes de século XVII, ser homem ou mulher era uma categoria sociológica e não ontológica. Uma posição social caracterizada pelas roupas, atitudes, expectativas e conformações sociais e não diferenciados pelos seus aparelhos genitais (LAQUEUR, 2001), como é hoje.
Segundo Laqueur (2001), pautada na filosofia neoplatônica de Galeno (século II), a medicina ocidental do século XVIII entendia a sexualidade humana baseado no modelo de sexo único, no qual a mulher era vista como um homem invertido e inferior.
“Invertido porque seus órgãos sexuais eram os mesmos dos homens, só que voltados para dentro. Assim, o útero era o escroto, os ovários, os testículos, a vagina, o pênis, e a vulva, o prepúcio. Inferior porque a mulher era concebida como um homem imperfeito, a quem faltavam a força e a intensidade do calor vital, esse último responsável pela evolução do corpo até a perfeição ontológica do macho” (COSTA, 2001).
O modelo do sexo único consistia em:
“... um mundo onde pelo menos dois gêneros correspondem a apenas um sexo, onde as fronteiras entre masculino e feminino são de grau e não de espécie, e onde os órgãos reprodutivos são apenas um sinal entre muitos do lugar do corpo em uma ordem cósmica e cultural que transcende a biologia” (LAQUEUR, 2001, p. 41).
Ou seja, as diferenças anatômicas vistas pelos médicos não eram entendidas como dois sexos, mas como uma variância do mesmo sexo em termos de um grau de perfeição. Esse modelo inscrevia as distinções como marcas sociais para manutenção de uma relação hierárquica entre homens e mulheres. As diferenças eram expressas em formas de gênero e não de sexo.
Contudo, “o sexo também é situacional e só pode ser entendido no campo das relações entre gênero e poder” (ROHDEN, 1998). No final do século XVIII, diante da Revolução Francesa, junto aos avanços científicos e anatômicos, surgiu a necessidade de justificar e legitimar as diferenças entre os sexos, agora vistos como substancialmente diferentes, “de modo a torná-las compatíveis com os ideais igualitários republicanos” (COSTA, 2001).
“... mudanças nas relações entre homens e mulheres, vinculadas ao industrialismo, à divisão sexual do trabalho, bem como às ideias de caráter feminista então em circulação, são algumas das condições que possibilitam essa mudança de paradigmas” (LOURO, 2004, p. 78).
Surge, então, a lógica binária, tendo como base agora o biológico e não mais o ontológico, possibilitou a compreensão das mulheres como o sexo mais “frágil”, pois o sexo tornou-se a prova da diferença e da “existência de dois sexos opostos e estáveis” (JORGE e TRAVASSOS, 2018, p. 42). A ordem social passou a ser pautada pela diferença vista como base entre os sexos, visto na genitália, predeterminando os papeis exercidos por homens e mulheres (JORGE e TRAVASSOS, 2018). “Mulheres e homens passaram a ser comparados pelo padrão da descontinuidade/oposição e não da continuidade/hierarquia” (COSTA, 2001).
“Homens e mulheres deviam ter um tipo de prazer sensual, de conduta social e de vida emocional adequados à natureza biológica de ‘seus sexos’. Do contrário, não seriam exemplares normais da espécie, e sim indivíduos desviantes, anormais, doentios ou degenerados. Os sujeitos, até então avaliados moralmente por seus atos, pensamentos e sentimentos religiosos ou pelos valores da hierarquia aristocrática, passam a ser julgados pela conformidade à finalidade sexual de suas supostas ‘naturezas biológicas’. Na anatomia estava o destino psicológico-moral dos viciosos e virtuosos” (COSTA, 25 mar. 2001).
Os corpos passaram a ser o fundamento da sociedade civil, como ponto decisivo para silenciar toda e qualquer forma de expressão de uma variedade daquilo que é padrão (LAQUEUR, 2001), como a transexualidade.
“A educação, assim como outros aparatos culturais e políticos, nos adestra para a ‘normalidade’ social, sendo que a generificação esperada é um de seus pontos principais, assim como a altamente demandada heterossexualidade. Outras formas de expressão de gênero e/ou de desejo tendem a ser punidas, recusadas e até mesmo suprimidas a depender do contexto em que aparecem” (MISKOLCI, 2014, p. 21).
Escrito por Maria Martha Gibellini
Referências:
COSTA, Jurandir Freire. O sexo segundo Laqueur. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 de março de 2001.
JORGE, Marco Antonio Coutinho e TRAVASSOS, Natália Pereira. Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência. 1a edição ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho - ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 1. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
MISKOLCI, Richard. Estranhando as Ciências Sociais: notas introdutórias sobre Teoria Queer. Florestan - Revista da Graduação em Ciências Sociais da UFSCar, São Carlos, s/n, 2014.
ROHDEN, Fabíola. O corpo fazendo a diferença. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 127-141, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 15 de novembro de 2018.
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